Processamento da borracha transforma vida de homens da floresta
Encauchados de vegetais elevam renda de seringueiros e indígenas no Acre. Projeto foi um dos vencedores do Prêmio Fundação BB de Tecnologia Social em 2007
Brasília, 4 - Eles acordam muito cedo. Às 3h já estão na mata, riscando as seringueiras. Retornam ao barracão somente na metade do dia. Nesse horário, seus companheiros de trabalho já os aguardam para dar seguimento ao trabalho. Nessa hora, adicionam o agente vulcanizante à borracha. Depois, panela no fogo, cozinham a mistura e dão início à produção de sacolas, porta-lápis, camisetas e embalagens de borracha. Com os produtos, tiram os intermediários do negócio e assim melhorar a renda e avivam o orgulho.
O líquido vulcanizante, que não deixa o látex perder a elasticidade e coagular, é resultado de pesquisa do professor da Universidade Federal do Acre (Ufac) Francisco Samonek. Em conjunto com seringueiros e indígenas da região, ele fez diferentes testes com substâncias naturais coagulantes até chegar a formula correta.
Ao processo de vulcanização da borracha, o pesquisador deu o nome encauchados de vegetais da Amazônia. O projeto venceu, em 2007, o Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social.
A produção das peças de látex combina fibras vegetais, como embaúba e algodoeiro, pigmentos e aromas obtidos de forma natural, extraídos de folhas da anilina, das cascas do jatobá, do breu e da semente de urucum.
Mãe seringueira - O projeto encauchados vegetais tem transformado a vida de homens como Raimundo Nonato Soares, 42 anos, morador na Reserva Extrativista Cazumbá, em Sena Madureira. Casado com Eleonora, a Nói, e pai de três filhos, Nonato conta que trabalha desde os 10 anos com o pai e os 11 irmãos no seringal.
Todo o dinheiro que recebe com os produtos que fabrica com a borracha – sacolas, porta-lápis, camisetas e embalagens - é reservado para os estudos dos filhos de Nonato.
Nonato é um homem feliz com o trabalho que faz. “Dentro da floresta, encontro tranqüilidade; meu pai me criou assim, vendendo borracha para comprar alimento. A seringueira é minha mãe”.
Ele coordena o projeto na reserva, distante 40km de Sena Madureira, e é um dos multiplicadores nas reservas e aldeias indígenas. Segundo a coordenadora pedagógica do projeto, Maria Zélia Damasceno, Nonato já está capacitado para ensinar sozinho o que aprendeu.
Na reserva Cazumbá, 17 famílias estão envolvidas no projeto. Enquanto os homens são responsáveis por trazerem o látex da floresta, as oito mulheres ficam por conta da fabricação das peças de artesanato, principalmente, da confecção das pequenas peças.
A coleta do látex é feita em turnos alternados. Cada homem sangra, em média, cem seringueiras por dia. O cuidado com a árvore é uma preocupação de todos, pois eles sabem que, se bem cuidadas, as árvores poderão fornecer matéria-prima por muitos anos.
Tradição com tecnologia - Outro homem que vive feliz no Acre é o indígena kaxinawá Antônio José de Albuquerque, 47 anos, morador da aldeia Nova Olinda, na região de Tarauacá, no município de Feijó.
Antes de conhecer o projeto, trabalhava com a borracha bruta. Vendia tudo o que coletava na floresta para usineiros das redondezas por uma pechincha. Com o dinheiro que obtinha, mal conseguia comprar o sal de sua comida.
Zé, como é chamado pelos brancos, ou Kup?, como batizado pelos homens de sua aldeia, conhece sua cultura e a utiliza para desenhar nas peças motivos indígenas. “Os desenhos que faço surgem na minha cabeça naturalmente”, explica. Para ele, a criação das peças emborrachadas tem ensinando seu povo a negociar e a buscar recursos para suprir as necessidades da comunidade. “Todo esse avanço se deve aos ensinamentos dos professores Samonek e Zélia, que estão deixando nosso povo preparado para caminhar sozinhos. Eles conseguiram colocar tecnologia em nossa antiga técnica de fazer borracha”.
“A borracha bruta perdeu o valor e nós estávamos vivendo precariamente do que a mata oferecia”, conta Zé, também um dos coordenadores e multiplicadores do projeto. Ele diz que depois que a comunidade se envolveu no projeto, seu povo tem permanecido nas aldeias.
Multiplicação da borracha - A Aldeia Nova Olinda tem 167 indígenas, dos quais 15 já trabalham no projeto. São homens, mulheres e jovens de todas as idades. As tarefas são divididas de acordo com a habilidade de cada um, explica Zé. Na produção, além dele, trabalham a esposa e os filhos mais velhos. Zé também é o responsável pela coleta do látex para produção das peças.
Maria Zélia afirma que o mais importante é deixar a criatividade de cada pessoa, seja seringueiro ou indígena, fluir. “A criação é deles; nós, da Pólo de Proteção da Biodiversidade e Uso Sustentável dos Recursos Naturais (Poloprobio), fornecemos apenas materiais, como baldes, tecidos, camisetas, agulhas e linhas”, esclarece.
Parte dos trabalhos feitos por seringueiros e indígenas está exposta na Casa do Artesão em Rio Branco. Outra parcela é vendida em feiras e exposições em todo país.
Hoje, cada comunidade recebe por volta de R$ 2 mil com a venda dos produtos. Somente para efeito de comparação, antes do início do projeto, a borracha bruta era vendida por R$ 0,82 o quilo. Hoje, essa mesma quantidade, transformada em artesanato, atinge R$ 100, valor 121 vezes maior.
Ampliação da rede - O projeto Encauchados de Vegetais da Amazônia começou nas terras indígenas Kaxinawá e Shanenawa, no município de Feijó, e na reserva extrativista do Cazumbá Iracema, em Sena Madureira, no Acre, em 2005. Envolve, aproximadamente, 11 aldeias indígenas e oito comunidades seringueiras.
Em cada comunidade ou aldeia, unidades produtivas, coletivas ou familiares, são criadas pelo Poloprobio. Cada unidade coletiva envolve cerca de 30 pessoas e as familiares, cinco pessoas. Atualmente, são mais de 500 pessoas, entre pesquisadores, técnicos, indígenas e seringueiros, espalhados por 29 unidades de beneficiamento da borracha, nos estados do Acre, Amazonas, Pará e Rondônia.
O projeto conta com parcerias do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), do Programa Biodiversidade Brasil/Itália e do Banco da Amazônia (Basa), que apostam na capacidade dessas famílias.